VICIADOS NA TELINHA


POR Ana Maria Machado para Carta Capital


As novas tecnologias são de fato muito atraentes para crianças e jovens, mas qualquer pessoa que goste de ler sabe dosar seu tempo


Caro professor,

Entre as perguntas repetidas que costumam me fazer, uma das mais frequentes é sobre a concorrência que as novas tecnologias fazem à leitura. Todo mundo parece se preocupar muito com o efeito que as telas da televisão ou do computador podem ter para desviar leitores das páginas dos livros.  Realmente, são tentadoras. Mas não são o fim do mundo.

Às vezes respondo com lembranças de meu tempo de menina, quando televisão não existia com a força de hoje. Mas existia quintal – algo que atualmente, em grande parte se acabou. E poucas coisas podiam ser tão tentadoras quanto quintal. Tinha árvore, terra, minhoca, espaço para correr, brincar de pique, jogar bola, fazer comidinha, pular amarelinha… Um monte de atividades muito atraentes que também competiam com a leitura. A gente brincava muito. E também lia muito.

Com essa lembrança, quero reafirmar que o problema não está na existência de outras solicitações tentadoras. Qualquer pessoa que gosta de ler sabe dosar seu tempo entre elas.  Como na economia de nossa sociedade, o problema não está no fato de haver concorrência, está no monopólio. E recai sobre pessoas que ainda nem tiveram a oportunidade de saber se gostam de ler ou não. Quem já descobriu as delícias da leitura sabe escolher o momento em que vai ler, ou a hora em que se senta à frente da televisão, vai navegar na internet ou mergulhar num videogame.

A primeira questão, então, seria garantir às crianças a descoberta das histórias e da literatura infantil desde cedo. Isto se consegue por meio de exemplo e constante convívio com livros – em casa, na escola, na frequência de bibliotecas, na ida a livrarias para folhear e explorar as páginas coloridas. Feito isso, o gosto pelas narrativas vem naturalmente.

Há, porém, outro aspecto que me preocupa muito mais. Esse, sim. É o que combina a dosagem e o conteúdo daquilo com o que normalmente as crianças têm contato nessas novas tecnologias, quando não existe um cuidado dos responsáveis em orientá-las nesse universo. Nem vou falar nos perigos mais óbvios, no âmbito policial – como passar informações pessoais a estranhos ou se deixar enredar em redes de pornografia, pedofilia e outras doenças sociais de nosso tempo. Mas falo de coisas mais simples: o tempão excessivo dedicado a esses meios e o conteúdo que passa a constituir a dieta quase única com que se alimenta o imaginário infantil nessas circunstâncias. Quanto à dosagem, sabemos que o Brasil é um dos campeões mundiais do tempo médio que criança passa em frente das telinhas – tanto de tevê e vídeo quanto de computadores. Triste campeonato, sinal do abandono a que estamos relegando nossa infância.  Mas não somos os únicos. E nem tudo o que as telas trazem é de se jogar fora. O que se precisa é selecionar e limitar. Recentemente, uma reportagem na televisão mostrou que na Inglaterra estão fazendo clínicas para adolescentes e jovens viciados em internet, locais em que os tratamentos para reduzir a dependência e enfrentar as crises de abstinência seguem os modelos das terapias com que se tratam outros vícios.

Por outro lado, também tenho constatado outro fenômeno, tanto em minhas andanças por nossas cidades quanto na leitura da imprensa. A proliferação das lan houses tem sido acompanhada por sua insistência em oferecer um cardápio único, de jogos do mesmo tipo – invariavelmente muito violentos. Há poucos meses, uma grande revista semanal trouxe um número especial sobre a expansão da informática e das novas tecnologias em geral, enfatizando sua extraordinária disseminação entre nós, com a multiplicação de pontos de acesso por toda parte – o que é ótimo, desejável e necessário, para reduzir desigualdades e aumentar oportunidades de conhecimento. Mas o que me chamou a atenção, em especial foi um aspecto secundário, pelo qual a reportagem passava sem se deter. Todas as fotos de lan houses, em diferentes bairros e cidades, quando tiradas de um ângulo que permitisse ver o monitor diante do qual se sentavam adolescentes ou crianças, mostravam cenas de atirar em alvos – fossem eles no Oeste americano, em ruas ocidentais contemporâneas, em aviões nos céus, navios no mar, estradas.  Não se trata de um ou outro filme, história ou desenho animado – onde há uma batalha entre um lado e outro, inserida numa narrativa que lhe dá sentido ou opõe significados morais na escolha – como, em sua linguagem simbólica, a arte tem feito ao longo da história humana. Nada disso. É só um jogo de mirar e atirar, competindo para ver quem mata mais. A mais absoluta banalização da violência e da agressividade, sem que haja qualquer consequência depois. Um treinamento para matar, em idade tenra. E ficar impune. Numa revista para educadores, não preciso dizer o que isso significa e ensina.

É mais do que hora de estarmos atentos para os cuidados que devemos ter nessa área: limites do tempo que as crianças dedicam aos jogos e escolha equilibrada dos conteúdos. Atentar para isso não é uma forma odiosa de repressão. Faz parte da responsabilidade social. E é uma manifestação de amor.

Ana Maria Machado para Carta Capital

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